quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

O falar cotidiano

Da varanda de casa vejo uma policial dizendo que a ordem será mantida nem que seja à bala. Que irá proteger os “homens de bem” contra os estúpidos “marginais”, perigo para a sociedade.
Da varanda de casa vejo funcionários dizendo que o governo está trabalhando, que o Estado está cuidando do povo.

Da varanda de casa vejo carrões com pessoas da alta sociedade. Elas dizem que são um exemplo de pessoas que venceram na vida, que vencer na vida é ter um carrão e quem trabalhar também vencerá. Vejo pessoas simples, pobres no afã do vai e vem do dia a dia. Elas dizem que querem vencer na vida e para isso precisam batalhar, falam que em nossa sociedade enquanto uns têm carrões outros andam a pé e isso é legítimo.

Da varanda de casa vejo homens e mulheres dia e noite nos botecos, bêbados, caídos pelos cantos. Vejo uma senhora dormindo na calçada em noites quentes ou geladas, com neblina ou com chuva. Eles dizem que são produto da exclusão, base de sustentação de um modelo econômico que privilegia poucos e faz o que era pra todos ser controlado por estes poucos. Falam que são a escória da sociedade, resultado da crueldade sutil do homem civilizado, que torna invisível aquilo que salta aos olhos até do mais cego dos homens.

Da varanda de casa vejo a feira, me acordando com um zumbido alto e indecifrável, dizendo que a roça está se encontrando com a cidade. Vejo senhoras da elite, todas bem modernas e urbanas se encontrando com as mulheres do povo, gente acostumada a suar para comer todo dia. Elas dizem que em Caetité não há luta de classes nem estratificação social pois as classes convivem em harmonia, artifício ideológico de um ardiloso “monstro sist” ávido por suor e sangue do pobre. Vejo os cumpade se encontrar e a prosa rolar, as nutiça da semana se atualizar, os negoço acontecer, os namoro se arrumar. Eles dizem que feira é um lugar não só de comércio, mas também de sociabilidade, de encontro, de fortalecer os laços de solidariedade.

Da varanda de casa vejo a feira e seu trabalho todo dividido. Os donos de caminhão fornecendo mercadoria, os homens que descarregam, os feirantes empenhados em comprar e vender seus produtos, o homem da roça que traz sua produção... Eles dizem que o povo da cidade não se ocupa de produzir alimentos e precisa ser alimentado, falam que a racionalização do trabalho os fizeram cumprir sua parte dentro de uma rede que envolve muitos braços.

Da varanda de casa vejo lindas mulheres num requebro de quadril inebriante, generosos decotes bem mais insinuantes quando vistos de cima. Admiradas, desejadas, todos viram o pescoço, qual coruja num poste de cerca, um psiu ou coisa parecida ressoa pela rua. Vejo mulheres feias a passar, estrupícios desconjuntados de um vermelho berrante nos beiços e corpos assombrosos, uns e outros se riem entre si. Uns: “mulher feia e jumento quem procura é o dono”; outros: “mulher feia e jumento comigo é na pedra”. Um “ói o cão muié feia” ressoa pela rua. Elas dizem que nossa sociedade constrói padrões e usa a aparência para avaliar pessoas. Falam que no mundo moderno, civilizado a brutalidade é sutil, a barbárie é camuflada por atitudes legítimas.
Da varanda de casa eu vejo... Eles são muitos, falam alto e todos ao mesmo tempo. Vozes silenciosas que falam por gestos, posturas, sorrisos, hábitos e comportamentos cristalizados pela repetição indefinida de um cotidiano irrefletido.

Anísio Filho, historiador – Agrovila 08, Serra do Ramalho-BA

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